Cap. 19: O Sumiço

Cadaver na Cozinha 19
Durval sabia que deveria ligar para um advogado, mas simplesmente não tinha energia nenhuma para fazer isso. Deitado no sofá, tocava Canon em Ré Maior de Pachellbel na flauta contralto. A música barroca sempre teve o poder de trazer serenidade e calma para Durval. De olhos fechados, os dedos moviam-se com precisão pelo corpo do instrumento, e as notas envolviam Durval como um manto protetor, tranquilizando os pensamentos, praticamente evaporando a inquietação. Por entre as notas não havia confusão. Tudo era preciso e certo. Cada som e pausa imprescindível, primoroso. Uma nota subtraída e haveria diminuição, uma nota acrescentada e a beleza se perderia. A matemática da música era como uma trincheira sempre disponível. A escolta que o protegeria de todos os inimigos.
               O som da campainha irrompeu acima da música. Durval não se mexeu. Continuou tocando de olhos fechados. Outra vez a campainha soou.
              Dolores desceu as escadas e foi até a porta.
              Durval a ouviu indistintamente conversando com alguém por trás da música. Estranhamente a voz da pessoa parecia familiar, mas Durval não conseguiu identificar de quem era.
              Então o silêncio.
              Durval esperou Dolores voltar, imaginando que a pessoa teria ido embora. Mas ela não voltou.
              Depois de mais uma frase da música, Durval tirou a flauta da boca e abriu os olhos.
             — Dodô?
              Nada.
             — Dolores?
              Aguçou os ouvidos e meneou a cabeça: nada.
              Resmungou alguma coisa, colocou a flauta na mesinha lateral e se pôs a levantar do sofá. Primeiro a perna boa. Depois a engessada. Onde estava a bengala? Com jeito curvou-se e apanhou-a do chão. Usando as duas mãos na bengala, levantou-se. Esperou o equilíbrio, e então, pé ante pé, foi até a porta da sala.
              Aberta.
              Olhou em volta pela varanda e no quintal repleto de plantas à frente. Nada de Dolores.
             — Joana? — esperou um segundo. Então de novo: — Joana! Vem aqui, mulher!!
              Joana chegou por trás:
             — O que foi, Seu Durval?
             — A Dolores veio aqui atender alguém e simplesmente sumiu. Vai até ali no portão da rua e veja se ela está por lá.
              Durval esperou a empregada ir até o portão. A mulher foi e espichou o corpo gordo e mole de cento e trinta quilos por cima do portão. Olhou para um lado, para o outro. Depois abriu o portão e saiu para a calçada. Olhou de novo para um lado e para o outro.
              Então voltou.
             — Ela não tá na rua, não, Seu Durval.
              Mais essa!
              Durval voltou para dentro e foi até o telefone na escrivaninha da sala, discou rápido com a mão já trêmula de ansiedade.
             — O delegado Moreira, por favor? Sim… Aqui é o Durval.
              E então ele ouviu a atendente dizer-lhe que o delegado Moreira havia sido assassinado há menos de trinta minutos dentro de sua sala, na delegacia.
              Durval sentiu as pernas amolecerem. Tentou segurar-se na beirada da escrivaninha, mas não havia nenhuma força nos braços ou nas pernas. Lentamente foi ao chão. Sentiu a respiração faltar-lhe, puxava o ar, mas ele não vinha. As vistas foram escurecendo. Sabia que ia desmaiar. Então ele viu os pés de Joana de chinelo. A mulher parou bem perto dele. Durval viu quando ela se abaixou e pegou o telefone de sua mão.
              A última imagem foi a de Joana colocando o fone no gancho.
 
 
CONTINUA…

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