Durval sabia que deveria ligar para um advogado, mas simplesmente não tinha energia nenhuma para fazer isso. Deitado no sofá, tocava Canon em Ré Maior de Pachellbel na flauta contralto. A música barroca sempre teve o poder de trazer serenidade e calma para Durval. De olhos fechados, os dedos moviam-se com precisão pelo corpo do instrumento, e as notas envolviam Durval como um manto protetor, tranquilizando os pensamentos, praticamente evaporando a inquietação. Por entre as notas não havia confusão. Tudo era preciso e certo. Cada som e pausa imprescindível, primoroso. Uma nota subtraída e haveria diminuição, uma nota acrescentada e a beleza se perderia. A matemática da música era como uma trincheira sempre disponível. A escolta que o protegeria de todos os inimigos.
O som da campainha irrompeu acima da música. Durval não se mexeu. Continuou tocando de olhos fechados. Outra vez a campainha soou.
Dolores desceu as escadas e foi até a porta.
Durval a ouviu indistintamente conversando com alguém por trás da música. Estranhamente a voz da pessoa parecia familiar, mas Durval não conseguiu identificar de quem era.
Então o silêncio.
Durval esperou Dolores voltar, imaginando que a pessoa teria ido embora. Mas ela não voltou.
Depois de mais uma frase da música, Durval tirou a flauta da boca e abriu os olhos.
— Dodô?
Nada.
— Dolores?
Aguçou os ouvidos e meneou a cabeça: nada.
Resmungou alguma coisa, colocou a flauta na mesinha lateral e se pôs a levantar do sofá. Primeiro a perna boa. Depois a engessada. Onde estava a bengala? Com jeito curvou-se e apanhou-a do chão. Usando as duas mãos na bengala, levantou-se. Esperou o equilíbrio, e então, pé ante pé, foi até a porta da sala.
Aberta.
Olhou em volta pela varanda e no quintal repleto de plantas à frente. Nada de Dolores.
— Joana? — esperou um segundo. Então de novo: — Joana! Vem aqui, mulher!!
Joana chegou por trás:
— O que foi, Seu Durval?
— A Dolores veio aqui atender alguém e simplesmente sumiu. Vai até ali no portão da rua e veja se ela está por lá.
Durval esperou a empregada ir até o portão. A mulher foi e espichou o corpo gordo e mole de cento e trinta quilos por cima do portão. Olhou para um lado, para o outro. Depois abriu o portão e saiu para a calçada. Olhou de novo para um lado e para o outro.
Então voltou.
— Ela não tá na rua, não, Seu Durval.
Mais essa!
Durval voltou para dentro e foi até o telefone na escrivaninha da sala, discou rápido com a mão já trêmula de ansiedade.
— O delegado Moreira, por favor? Sim… Aqui é o Durval.
E então ele ouviu a atendente dizer-lhe que o delegado Moreira havia sido assassinado há menos de trinta minutos dentro de sua sala, na delegacia.
Durval sentiu as pernas amolecerem. Tentou segurar-se na beirada da escrivaninha, mas não havia nenhuma força nos braços ou nas pernas. Lentamente foi ao chão. Sentiu a respiração faltar-lhe, puxava o ar, mas ele não vinha. As vistas foram escurecendo. Sabia que ia desmaiar. Então ele viu os pés de Joana de chinelo. A mulher parou bem perto dele. Durval viu quando ela se abaixou e pegou o telefone de sua mão.
A última imagem foi a de Joana colocando o fone no gancho.
CONTINUA…